Conquistar a liberdade política, alcançar uma democracia popular

CONQUISTAR A LIBERDADE POLÍTICA, ALCANÇAR UMA DEMOCRACIA POPULAR*

Repetida em diferentes tons, ouve-se frequentemente a afirmativa de que a situação do mundo e do Brasil demanda maior fortalecimento do Poder Executivo - neologismo que significa negação de liberdades - e novos instrumentos repressivos para a defesa do Estado.

Os generais não se cansam de salientá-la. Há doze anos, aferram-se a um sistema antidemocrático de governo. Quando se lhes exige a revogação do Ato Institucional nº 5, que estabelece um regime permanente de exceção, contestam afirmando esse Ato correspondente à realidade mundial e nacional. Políticos de diferentes tendências também se valem dessa afirmativa, procurando justificar graves atentados aos direitos do cidadão.

Vai se tentando fazer a opinião pública aceitar como normal e fatal os regimes despóticos, reputar sua existência como indispensável e definitiva, acreditar não ser possível gozar de efetiva liberdade porque seria expor-se a inúmeros perigos. Usam argumentos os mais inconsistentes para demonstrar essa suposta fatalidade.

Os brasileiros, porém, não se conformam com a tirania, nem aceitam as tentativas de camuflagem da exceção. Compreendem, cada vez melhor, a importância da conquista da liberdade a fim de unir e organizar as grandes massas, elevar sua consciência política e desenvolver a luta por novas e mais elevadas formas de democracia.

O argumento da violência

O raciocínio mais em voga para fundamentar pontos-de-vista retrógrados atribui ao povo a intensificação da violência. Os militares nele se apóiam ao defender as medidas restritivas no campo político. Alegam que a liberdade nos dias de hoje propicia o caos, a anarquia, a baderna, culpando implicitamente as massas pelo desaparecimento da democracia.

Violência é um velho tema utilizado pela reação para mistificar e confundir. Quando o descontentamento popular se acentua e se desdobra em poderosas lutas, os reacionários forçam as notas mais graves da partitura confusionista, incriminando o povo de provocador da balbúrdia. Embora processo complexo e sujeito a deturpações, pode-se perfeitamente situar os responsáveis pela violência, evidenciar de onde se origina e quem a inicia. Ela surge de uma ordem social injusta na qual a imensa maioria da população, exatamente a que produz, se vê obrigada - por carecer de outros meios - a vender sua força de trabalho mediante salário ou a regar com seu suor a terra que não lhe pertence. Com seus esforços enriquece industriais, banqueiros, comerciantes, fazendeiros e latifundiários, enquanto se debate em dificuldades e afunda na pobreza.

Como ocorre no Brasil, enorme contingente de trabalhadores está submetido ao arrocho salarial, milhões de camponeses são privados do uso da terra, inúmeros brasileiros não têm emprego e curtem miséria, ao passo que os grandes capitalistas, particularmente os estrangeiros, e os donos de latifúndios obtêm fabulosos lucros. Essa ordem, iníqua por si mesma, representa uma forma de violência que condena as classes laboriosas a uma vida de párias da sociedade. Porém, não é a única forma. Em razão de os explorados e as pessoas sem recursos tenderem a se levantar e pugnar por seus interesses vitais, os exploradores empregam a violência organizada por intermédio do Estado que, conforme demonstrou exaustivamente Engels, "é instrumento de exploração do trabalho assalariado pelo capital". Em mãos dos exploradores, o aparelho estatal reprime sistematicamente, e de diferentes modos, as aspirações populares, não permite que os trabalhadores escravizados façam algo que não seja próprio dessa sua condição. No Brasil, chega-se ao ponto de submeter a organização sindical a rígido controle da polícia, proibir assembléias e debates de reivindicações e até o simples direito de reclamar. Operários e camponeses acham-se impedidos de pleitear aquilo a que fazem jus. Portanto, além da exploração, a opressão. Em tal ambiente, são inevitáveis as agitações sociais e as lutas reivindicatórias. E mais: constituem uma necessidade. Se os trabalhadores e o povo não recorrerem às ações de massas - greves, manifestações de rua, resistência à grilagem e aos desmandos no campo, etc. - para se opor à violência organizada dos poderosos, acabarão se degradando e aceitando a escravidão.

A violência manifesta-se com grande força na fase de caducidade dos regimes econômico-sociais. Tal aconteceu na época do escravismo e do feudalismo e acontece na era contemporânea com o capitalismo. Nessa fase tem lugar um período - que às vezes persiste por longo tempo, com avanços e recuos - de comoções políticas e atos revolucionários visando à derrubada dos obstáculos antepostos ao progresso, tentando substituir o regime obsoleto. É um fenômeno objetivo que surge das contradições antagônicas geradas no seio da sociedade, da necessidade de serem liquidadas as relações de produção atrasadas que entravam o desenvolvimento das forças produtivas. Essas contradições encontram sua expressão política em reivindicações que correspondem a um estágio superior do desenvolvimento social. Em torno destas, agrupam-se grandes forças que se defrontam com a resistência desesperada das classes retrógradas, o que determina o aprofundamento da luta e a conseqüente solução do conflito com a derrota da reação. Ainda aqui, os responsáveis pela violência são os fatores do atraso, as velhas estruturas e superestruturas que resistem às mudanças, os reacionários que nada cedem e tudo fazem para sustentá-los.

No Brasil, vivemos um estágio de decadência do regime baseado fundamentalmente no monopólio da terra e no capital estrangeiro. Mais recentemente, também em grupos monopolistas da grande burguesia brasileira. Esse regime converteu-se num estorvo ao desenvolvimento independente do país e ao progresso social. O domínio do latifúndio e dos trustes imperialistas, que já vem de longe, acentuou-se nestas últimas décadas, agravando consideravelmente os males da sociedade brasileira. Conquanto tenha havido certo crescimento do capitalismo, em particular com a expansão de empresas alienígenas, esse crescimento deformado aumentou a dependência às oligarquias financeiras internacionais e manteve a situação de atraso e pobreza das grandes massas, sobretudo do campo. As relações de produção predominantes atuam como freio ao desenvolvimento das forças produtivas efetivamente nacionais, impedem o alargamento do mercado interno, conservam o país no rol dos subdesenvolvidos. Tornaram-se, assim, mais profundas as contradições entre a nação espoliada e o imperialismo e seus sustentáculos internos; entre o proletariado e a burguesia; e entre as massas populares, os milhões de camponeses sem terra, de uma parte, e os detentores da grande propriedade territorial, de outra. Do agravamento dessas contradições é que brotam o movimento nacional e democrático e o impulso combativo do povo reclamando um governo popular, a exigência da liquidação da espoliação estrangeira, dos grupos monopolistas ligados a essa espoliação e a reforma agrária radical. Não são criações artificiais, resultam de processo objetivo que vem se desenrolando desde há muito. Prosseguirão robustecendo-se, com altos e baixos, até a consecução de seus fins, até a remoção do arcaico e condenado regime.

Quem inicia, porém, a violência são os setores retrógrados. Opondo-se por todos os meios ao avanço da sociedade, lançam mão de métodos brutais a fim de contê-lo. É o que se sucede em nosso país, particularmente nestes últimos doze anos. No período anterior ao golpe de abril de 1964, a reação interna e o imperialismo ianque viam, preocupados, o despertar das massas e o vigoroso elã que tomavam suas lutas. Urdiram e desencadearam o pronunciamento militar. O povo encontrava-se desarmado política e materialmente para enfrentar a truculência das Forças Armadas, sofreu o impacto sem esboçar, de imediato, maior resistência. Apesar disso, os generais desataram a mais insólita violência já assistida em nossa pátria. Pisotearam os mais elementares direitos do povo, prenderam e torturaram milhares de pessoas, cassaram direitos políticos ad perpetuam. A partir de fins de 1968, com o incremento da oposição, multiplicaram as prisões e generalizaram os métodos selvagens de tortura, iniciaram a matança seletiva de patriotas e revolucionários. Em abril de 1972, investiram covardemente contra os moradores do sul do Pará, cometendo toda sorte de arbitrariedades. O banditismo fascista espalhou-se e os generais continuam aprestando-se para sufocar os legítimos anseios das massas. Dizem abertamente que aplicam a violência contra-revolucionária a fim de prevenir a violência revolucionária. Foram eles, portanto, que a puseram na ordem-do-dia.

O povo brasileiro não tem outro recurso se não o de apelar para a violência revolucionária, justificada duplamente: pelo barbarismo da ditadura que nega sagrados direitos aos cidadãos e utiliza processos ferozes de repressão e pela necessidade histórica de substituir o regime caduco que causa tão grandes males ao país. Como assinalou Marx, a violência joga o papel de parteira de toda velha sociedade que leva em suas entranhas outra nova, serve de instrumento por meio do qual o movimento social alcança a vitória e faz saltar em pedaços as formas políticas mortas e fossilizadas.

A defesa do Estado

Juntamente com o falso argumento da violência, os generais empregam também o embuste da defesa do Estado para tentar encobrir seus propósitos ditatoriais e a política criminosa que realizam. Após subverter a ordem constituída e implantar um sistema arbitrário, proclamam o Estado ameaçado pela subversão, precisando de instrumentos especiais para a sua defesa.

Apresentam-no como se fora instituição comum ao conjunto da sociedade e de natureza inalterável. Mas o Estado não representa a sociedade inteira, serve aos interesses de determinadas classes. Não é inalterável, modifica-se quanto ao conteúdo e à forma, dependendo dos setores que o dominam e do desenvolvimento da luta de classes. Tampouco está isento de conflitos internos. As diferentes frações da burguesia e dos latifundiários, assim como poderosos consórcios internacionais disputam entre si o domínio do aparelho estatal.

A verdade é que em abril de 1964 ocorreram mudanças na estrutura político-social do Estado brasileiro. Com o apoio norte-americano, os generais desalojaram a burguesia nacional e setores patrióticos das posições que nele ocupavam. Adulteraram a Constituição, liquidaram o sistema representativo e os partidos políticos em atividade legal, transformaram o Congresso num órgão de fachada, suprimiram a autonomia de inúmeros municípios, aboliram princípios federativos, alteraram as funções do Judiciário e ampliaram inclusive a esfera da ação da Justiça Militar, mudaram a estrutura das universidades. O Estado atual converteu-se essencialmente num órgão a serviço de pequeno grupo de monopolistas da grande burguesia, associada ao capital estrangeiro, de latifundiários aburguesados, especialmente dos ligados à exportação, e dos monopólios imperialistas, notadamente os estadunidenses. Os altos escalões das Forças Armadas, sobretudo do Exército, formam a sua cúpula. Apesar de se apresentarem como originários da classe média, os militares são parte integrante da máquina de opressão do povo, suas concepções correspondem às das correntes retrógradas e antinacionais. Quanto à forma, o Estado evoluiu para o fascismo, que se confunde com a ditadura das Forças Armadas. Estabeleceu-se pesada e custosa aparelhagem burocrática e requintado mecanismo de repressão ao povo. A cada dia surgem novos quartéis e crescem os efetivos militares e policiais, extensa é a rede de espionagem, as chamadas seções de segurança, que funcionam em toda parte com o fim de controlar e vigiar a atividade dos cidadãos.

Em tais circunstâncias, a defesa do Estado não passa de preservação do despotismo e dos interesses que ele protege. Órgão de dominação de classe, representa os setores que exploram do modo mais cruel as massas trabalhadoras das cidades e do campo. Atua como elemento de contenção brutal dos anseios populares, como força de choque dos piores exploradores e saqueadores. É um Estado-policial que se mantém por meio do terrorismo.

Existem diferentes formas de organização estatal das classes dominantes. Há as que se enquadram em certas normas da democracia burguesa e as que se regem por modelos autoritários e fascistas. Desde abril de 1964, prevalece esta última forma, um Estado de fato que substituiu o Estado de direito então vigente, malgrado suas deficiências. Propositadamente, os generais apresentam a forma atual de organização estatal como se fora única. Quaisquer críticas ao governo militar ou manifestações favoráveis à democracia são tidas como contestação e ataques ao Estado, passíveis de punições fundadas em medidas de exceção. "O Estado - dizem - precisa se defender das investidas de seus inimigos, cabendo a todos proteger-lhe a segurança". Ou ainda: "A instituição é sagrada, não pode ser alvo de agressões". Afinal de que Estado falam os generais? Do regido por determinadas normas democráticas ou do fascista? Evidentemente, ao invocar a intangibilidade do Estado e a necessidade de instrumentos especiais para a sua proteção, objetivam a defesa da ditadura. A luta que se trava no momento não se dirige contra o Estado de feição democrática, mas contra o sistema arbitrário implantado com o golpe de 1º de abril. Além disso, os generais esforçam-se em fazer crer que, no Brasil de hoje, estaria em jogo a opção entre o Estado e a subversão comunista para assustar os vacilantes e atraí-los para o seu lado. A verdadeira opção, porém, que se coloca diante dos brasileiros, presentemente, é entre o regime despótico e o Estado democrático, entre a instituição estatal dominada pelos militares e a que se pretende representativa da nação.

Invocando ardilosamente a defesa do Estado, o que os militares têm em vista é perpetuar as medidas de repressão contra o povo, embasadas na pretensa teoria da segurança e desenvolvimento, da qual se servem para tachar de subversão a luta pela salvaguarda das riquezas e da soberania nacionais, em prol da reforma agrária, por liberdade, melhores salários, cultura, progresso e completa independência. Eles não escondem seus intentos de manter o país indefinidamente sob a sua tutela. Arvoram o estandarte esfarrapado do anticomunismo para justificar a violência e tentar impedir a unidade das forças democráticas.

Os novos instrumentos repressivos

Aos argumentos capciosos dos generais somam-se opiniões equivocadas ou conciliadoras de alguns setores políticos que, embora discordando do regime discricionário em vigor, elaboram fórmulas antidemocráticas para institucionalizar o país. Refletem pontos-de-vista da burguesia ou de corrente conservadora prejudicada pela orientação do governo, ambas temerosas da revolução e do ascenso do movimento popular.

São conhecidas manifestações a esse respeito. Célio Borja, presidente da Câmara Federal, da Arena, explica a fascistização do país alegando que a época "é de rebelião e subversão endêmica, universal". Um dos dirigentes do MDB, o senador Saturnino Braga, afirma: "o mundo de hoje não é o mesmo em que se permitia o liberalismo puro. As formas de violência levam o Estado a armar-se com instrumentos que não são os clássicos", agregando que seu partido "não é contrário à institucionalização dos instrumentos indispensáveis à segurança", tese a que aderiu sofregamente seu colega de bancada, Marcos Freire. Já o ex-chefe da Casa Civil do governador de São Paulo, professor Arrobas Martins, batendo na mesma tecla, enfatiza: "Não é mais possível, contentemo-nos com os velhos instrumentos de defesa (...) o mundo mudou, as condições mudaram (...) é preciso que nos munamos das armas indispensáveis". E propôs a legalização da intervenção militar na política.

Pregando tais idéias, confessam, sem o querer, que a democracia das antigas classes dominantes, em quase toda parte, está superada e constatam, involuntariamente, a caducidade do sistema vigorante. O mundo mudou... a rebelião é universal... Mas não se dão ao trabalho de examinar em que consiste a mudança. Uma análise, mesmo superficial, mostrar-lhes-ia que a modificação reside no profundo inconformismo que lavra entre as massas com os velhos regimes, ultrapassados, incapazes de dar solução aos problemas por eles mesmos criados e que afetam a vida da maior parte da humanidade. Aos verdadeiros democratas essa constatação induziria à tarefa de ajudar a desobstruir o caminho a fim de que prevalecesse a vontade do povo, pois as rebeliões, em última instância, são os propulsores da história, forçando a marcha, abrindo passagem a novos sistemas sociais. Contudo, os autores das propostas acima parecem tirar outras conclusões: se as massas se levantam, se o desejo de mudar a situação adquire caráter "endêmico", isto é, generalizado, continuado, persistente, então se impõe reforçar o aparelho repressivo do Estado reacionário para evitar que elas triunfem. Colocam-se ao lado da reação e engrossam o coro desenxabido dos inimigos da liberdade repetindo o refrão - o Estado tem todo o direito de se defender... Demonstram, assim, não ser democratas. Querem substituir a ditadura por um regime armado de poderes excepcionais contra o povo.

Desenvolvendo semelhantes raciocínios, asseveram já não ser bastantes os instrumentos "clássicos" de defesa do Estado. É oportuno recordar que esses instrumentos são o "estado de sítio" incluído em todas as Constituições brasileiras e o "estado de guerra", posto em prática sem que existisse guerra, em 1937. O país viveu longos períodos submetido a tais situações injustificadas. Na década de 20, quase todo tempo. Na de 30, poucos foram os anos em que vigoraram alguns direitos e garantias individuais. Na de 40, idem, idem. À decretação dos referidos "estados" de exceção correspondia uma perseguição furiosa por parte do Executivo aos adversários políticos do governo e às massas trabalhadoras. Em realidade, instituía-se um sistema ditatorial que deixava os indivíduos à mercê da repressão. Agora, esses abusos são considerados insuficientes... Advoga-se o recurso aos meios "não-clássicos", vale dizer, mais drásticos que os anteriores. Precisamente os que a ditadura vem aplicando escudada no Ato Institucional nº 5. É certo que os propugnadores dos meios "não-clássicos" dizem-se contrários a esse Ato, pelo menos na forma atual. Na verdade, querem adequá-lo à Constituição. Afirmam que o mal reside na excepcionalidade, como se dando a esta um tratamento constitucional desaparecessem seus efeitos maléficos. O senador Marcos Freire não teve dúvida em declarar que pretendia transferir a exceção para a Carta Magna. Teríamos, assim, a exceção permanente em lugar da formalmente transitória. Como corolário dessa iniciativa, criar-se-ia um Conselho de Estado ao qual caberia aprovar e controlar as medidas excepcionais decretadas pelo Executivo sempre que este julgasse existir situação de anormalidade no país. Isto, porém, não modificaria o panorama. Tal Conselho seria simples apêndice do Executivo, com predominância dos militares ou de setores a eles ligados. Além do mais, são as Forças Armadas que opinam se a ordem pública está ou não ameaçada - há doze anos repetem que o Brasil se encontra em guerra psicológica, subversiva, revolucionária, etc. com o objetivo de manter um regime tirânico. Existem também os que sugerem a criação de um Poder Moderador a exemplo do que ocorreu na monarquia no século passado. Esse poder seria constituído fundamentalmente pelas Forças Armadas (a aristocracia fardada, na feliz expressão de um deputado cassado) elevadas, constitucionalmente, à posição de árbitros da política nacional. Em outras palavras, a legalização da intervenção militar permanente na vida política a partir de um plano superior ao dos outros poderes, a manutenção pura e simples da tutela militar sobre a nação. Queiram ou não seus autores, os instrumentos de defesa do Estado chamados não-clássicos são formas de arbítrio de que se reveste o fascismo, visam a sacramentar o sistema existente no Brasil.

Não têm cabimento as afirmações tão em moda entre certos círculos políticos a respeito do fortalecimento do Poder Executivo. É sabido que esse Poder sempre desfrutou de força e privilégio sobre os demais. Por trás dele, desde a República, atuou incisivamente o Exército. Jamais ocorreram situações em que o Executivo deixasse de operar ou tomar iniciativas por falta de instrumentos "legais". Nem se conhece caso em que o Legislativo ou o Judiciário, apoiados na Constituição, tivessem enquadrado e submetido o Executivo. Mas sabe-se de inúmeros episódios em que o Executivo interveio arbitrariamente no Legislativo suspendendo-lhe as atividades ou destituindo seus membros; e no Judiciário, afastando juízes cujas decisões, amparadas na lei, contrariavam a orientação do governo. Por que, pois, tanta bulha em torno do reforçamento do Executivo? Acaso tem sido débil? O aumento das suas prerrogativas conduzirá à institucionalização da ditadura.

Tampouco tem fundamento o ponto-de-vista de que para restabelecer o Estado de Direito se deveria articular fórmulas ou sugerir arranjos visando a modificar a Carta outorgada em 1969 ou reelaborá-la no Congresso a fim de incluir em seu texto os instrumentos "não-clássicos" de repressão e abolir o AI-5. Os partidários dessa solução alegam não haver Estado de Direito sem o pleno exercício constitucional. Sem dúvida, a premissa para alcançar aquele objetivo é a vigência de uma Constituição. Todavia, uma Carta que não resulte de uma Assembléia Constituinte livremente eleita pelo povo carece de valor, não tem autenticidade. O que caracteriza o Estado de Direito não é simplesmente a existência de uma Carta. O Estado Novo tinha a sua, a "Polaca", nem por isso deixava de ser uma ditadura fascista. O fundamento principal do Estado de Direito é a legitimidade do poder, mesmo com as ressalvas que se deve ter desse conceito no regime burguês. A organização estatal que se deriva de um golpe militar oposto à maioria da nação, tal como existe no país, é ilegítima em todos os aspectos e nenhuma Constituição outorgada ou ajeitada por um Congresso submisso poderá alterar-lhe a feição. O próprio direito constitucional brasileiro, em que pese a hipocrisia a ele peculiar, baseia-se no pressuposto de que o poder emana do povo. A única forma de restabelecer o Estado de Direito é acabar com a ditadura e convocar uma Assembléia Constituinte livremente eleita.

Eis aí toda uma gama de opiniões que, procurando passar por intérpretes de uma determinada conjuntura histórica, nada mais representam do que tentativas de justificar, promover e manter, aberta ou camufladamente, regimes arbitrários voltados contra o povo. Por mais sofisticadas que sejam, traem a marca de origem - a defesa de um sistema reacionário, contrário às transformações radicais que a sociedade brasileira está a exigir. Quanto mais a ordem obsoleta alicerçada no latifúndio e no capital estrangeiro - hoje também nos grupos monopolistas da grande burguesia ligados a esse capital - se afunda em contradições insolúveis, mais dá lugar ao despotismo, ao autoritarismo, ao fascismo. E gera também uma coorte de conciliadores, gente resolvida a ser democrata pela metade, a buscar em vão harmonizar interesses antagônicos que só podem ser superados pela revolução.

A questão política

Face às intrujices dos reacionários e dos conciliadores, as forças progressistas têm o dever não apenas de desmascará-los e revelar o sentido de suas teses e manobras, mas também de indicar o verdadeiro caminho da libertação, a solução política correspondente ao momento e à época em que vivemos.

Os doze anos de regime liberticida, de "executivo forte", supostamente em concordância com a situação do Brasil e do mundo, acarretaram gravíssimos problemas. O país debate-se com sérias dificuldades e está mais dependente do que nunca do capital estrangeiro. O endividamento externo é sete vezes maior do que o do período anterior ao golpe. As riquezas nacionais passaram às mãos dos trustes imperialistas, inclusive aquelas que já se achavam resguardadas pelo monopólio estatal. Acentuou-se a desnacionalização da economia. Segundo um ministro do governo de Geisel, entre 1966/70, "52% dos novos estabelecimentos registrados no Brasil sob controle de empresas americanas, se originaram da aquisição de empresas nacionais" e no triênio 1971/73, "61% do total de 'novas' empresas americanas nada mais representavam do que simples transferência de controle acionário". O latifúndio atingiu dimensões absurdas. Há propriedades que se assemelham às sesmarias da época colonial, enquanto milhões de camponeses carecem de terra para lavrar. As condições de vida da grande maioria da população pioraram consideravelmente. Apenas pequena parcela nos grandes centros urbanos leva uma existência razoável. Os problemas sociais tornaram-se ainda mais agudos.

Tudo isso aconteceu com o povo manietado, privado de seus sagrados direitos, proibido de lutar pelos interesses nacionais. O regime dos generais demonstrou, na prática, ser um sistema em contradição flagrante com as necessidades do desenvolvimento social. Esse regime, o pior que o país já teve, precisa ser varrido para se alcançar o progresso e a verdadeira independência.

Liberdade política

Com tal objetivo, a questão decisiva e imediata que se apresenta aos brasileiros é a conquista da liberdade política. Essa reivindicação interessa a extensos setores da população e permite, taticamente, a concentração do fogo sobre o inimigo - a ditadura militar-fascista, expressão acabada do entreguismo, da subordinação ao capital estrangeiro e do apoio à grande propriedade territorial. Presentemente, o regime militar-fascista é o obstáculo maior que se ergue no caminho do povo e necessita ser afastado para facilitar a marcha rumo à libertação nacional e social. Aparece como imprescindível às forças retrógradas e aos monopolistas ianques mas não pode ser mantido sem ocasionar, crescentemente, o descontentamento e o ódio de largas camadas da população.

A luta pela conquista da liberdade se une e, em certo sentido, se funde com a luta contra o imperialismo e o latifúndio, contra os grupos monopolistas brasileiros, pela independência nacional e a reforma agrária. Os monopolistas norte-americanos e as forças reacionárias internas são os fautores do golpe de 1º de abril de 1964 e do regime por ele criado. É com a ajuda, em todos os terrenos, dos imperialistas ianques - os mais interessados no sistema ditatorial - que os generais conseguem manter-se no poder. Sua derrubada constituirá sério revés para aqueles que os sustentam. Essa luta vincula-se, de igual modo, à defesa intransigente dos interesses imediatos das massas, por suas reivindicações mais sentidas. E se liga estreitamente ao combate ao hegemonismo das duas superpotências e à guerra que elas ativamente preparam, pois a repressão contra o povo é parte dos planos belicistas e de domínio do mundo dos Estados Unidos e da União Soviética. Enquadra-se, igualmente, nos elevados objetivos da frente mundial dos povos, cujas ações conjugadas contra a opressão e em defesa da democracia adquirem importância internacional.

A bandeira da liberdade, a par das demandas patrióticas e de defesa dos interesses imediatos das massas têm sido, nestes doze anos de ditadura, o motivo condutor das grandes ações populares. Destacou-se nas demonstrações de rua de 1968, nos protestos pelas prisões, torturas e assassinatos de perseguidos políticos, no repúdio à censura, nas ações estudantis em defesa de suas organizações independentes, na votação maciça contra o governo nas eleições de 1974. Surgiu com força na resistência armada do Araguaia. Não por acaso o AI-5 e o Decreto 477 são alvos constantes dos ataques da oposição democrática. É que esses dois instrumentos coercitivos personificam o arbítrio.

Um povo agrilhoado aspira antes de mais nada a quebrar as algemas. Somente os trotsquistas e outros aventureiros negam a importância da luta pela liberdade por eles falsamente apresentada como em contradição com os objetivos revolucionários, ao mesmo tempo que propõem, em seu lugar, ações de cunho econômico, social e cultural. Essa negação coincide com os interesses do regime militar que tem, na privação da liberdade, o seu ponto mais vulnerável. Aliás, os generais vêm afirmando ultimamente que admitem certa oposição nos terrenos econômico e social, mas não no campo político, isto é, no reclamo das liberdades que consideram contestação ao sistema tirânico. Trata-se de sentida aspiração das massas, diretamente relacionada à defesa de suas reivindicações e dos interesses nacionais. Ao pleitear melhoria de condições de vida, os trabalhadores das cidades e do campo defrontam-se, de imediato, com a repressão fascista. O mesmo sucede aos estudantes quando reclamam das taxas elevadas, da má qualidade do ensino etc; e aos patriotas ao defender as riquezas da nação. O governo só consegue impor o arrocho salarial ou entregar o petróleo porque se vive numa ditadura. Num regime em que prevalecessem garantias individuais seria impossível fazê-lo. A luta pelos direitos democráticos, nas condições de existência do fascismo, assume aspecto de alto significado político uma vez que se dirige frontalmente contra o poder estabelecido e seu sistema de repressão, estimula as ações em prol das reivindicações das massas, educa o povo na compreensão do papel do Estado como instrumento das forças reacionárias. Não se choca, ao contrário, impulsiona o movimento revolucionário. É incontestável que a classe operária, desde os seus primórdios, luta pela liberdade e por direitos políticos e, em todas as revoluções de que participou ou que dirigiu, essas exigências estiveram presentes. Lênin sublinhava que "quem quiser ir ao socialismo por outro caminho que não seja o do democratismo político, chegará inevitavelmente a conclusões absurdas e reacionárias, tanto no sentido econômico quanto no político." O povo aspira à liberdade para fortalecer sua organização e unidade, combater mais ampla e energicamente seus inimigos mortais, conquistar uma vida digna com independência e bem-estar para todos. O fato de os generais e seus acólitos virem repetindo a impostura de que não pode haver democracia nos países subdesenvolvidos, ressalta ainda mais a necessidade de se pugnar decididamente por ela. Eles compreendem, e muito bem, que nesses países, prenhes de revolução, a democracia conduzirá as massas a pôr na ordem-do-dia a solução dos problemas fundamentais, em particular o fim da espoliação estrangeira, do monopólio da terra, dos grupos monopolistas da burguesia.

Naturalmente, a conquista da liberdade tem de ser encarada como a extinção de todos os entraves à livre atividade do povo. Deve expressar-se no direito de constituir partidos políticos, formar sindicatos, ligas e uniões camponesas, centros estudantis e qualquer tipo de organização popular sem interferência governamental; na livre manifestação do pensamento; na edição de livros e jornais isentos de censura; na autonomia universitária; na criação artística sem empecilhos oficiais; na indicação popular de candidatos aos cargos eletivos; na eleição direta e secreta dos governantes; no direito de contestar, criticar, reunir, realizar greves e manifestações públicas. Deve exprimir-se também em medidas destinadas a desarraigar resquícios da herança reacionária do colonialismo, do escravismo e dos restos feudais ainda vivos em muitos aspectos da vida política, social e cultural do país.

Em sua Mensagem aos Brasileiros, de janeiro de 1975, o Partido Comunista do Brasil indicou a orientação concreta para alcançar aquele objetivo. Sintetizou-a nas palavras-de-ordem: Assembléia Constituinte livremente eleita; Abolição de todos os atos e leis de exceção; e Anistia geral. Isso corresponde às particularidades do momento e está conforme às aspirações das massas. Permite a criação de uma larga frente única contra o regime arbitrário e, simultaneamente, ajuda a delimitar os campos entre os que desejam a democracia e os que não vão além de remendos nesse regime. Focaliza também a questão principal da situação política que é a completa liquidação do sistema militar-fascista. Essa liquidação exige a convocação de uma Constituinte e, ao mesmo tempo, a abolição da legislação ditatorial, a suspensão das penas impostas a milhares de pessoas por motivos políticos.

É evidente, no entanto, que tais medidas só poderão se concretizar com a queda da ditadura e a formação de um governo democrático, de ampla coalizão, expressando a unidade das forças antiditatoriais ao nível em que se tenham desenvolvido. Embora seja indispensável travar a luta cotidiana pela liberdade em função da suspensão da censura à imprensa, ao teatro, ao rádio e à televisão, à música popular; da realização de assembléias e encontros estudantis, do livre funcionamento dos diretórios universitários; do direito de reunir e fazer greve por melhores salários, da organização legal dos operários nas fábricas; da libertação dos presos políticos; do respeito aos mandatos parlamentares; enfim, da anulação dos atos e medidas arbitrárias do governo - a efetivação das providências para pôr termo à situação atual somente serão conseguidas com a derrocada da ditadura. Essa derrocada constitui o centro da luta pela liberdade.

Todavia, a ditadura não cairá facilmente nem permitirá o crescimento tranqüilo da oposição. Embora no Brasil haja correntes ponderáveis que ainda acreditam ser possível obter a derrubada do atual sistema por meio unicamente da pressão de massas - correntes com as quais se deve trabalhar em frente única nas distintas esferas de ação - não há dúvida de que essa meta só será atingida com o emprego de vigorosas lutas, nas cidades e no campo, principalmente com a utilização das formas mais radicais. A pressão de massas, quando muito, obrigaria os militares a fazer modificações superficiais no regime. As ações limitadas, de diferentes tipos, têm enorme importância para ajudar a mobilização popular e o isolamento dos generais, não devem ser subestimadas. Inclusive as de natureza mais elementar, nas condições de terror em que vive o país, jogam determinado papel. Mas não se quebrará a resistência do fascismo, estribado nas Forças Armadas, sem recorrer à violência revolucionária.

O destino da ditadura, ao que tudo indica, não se resolverá num ato único. Exigirá todo um processo de lutas, de múltiplos aspectos, englobando a maioria da nação. "Se os brasileiros - diz a Mensagem do PC do Brasil - se unirem e lutarem decididamente de variadas formas nas fábricas e sindicatos, nas escolas e centros acadêmicos, nas fazendas e vilas, nas cidades e no campo, no Parlamento, no púlpito, no teatro, nos cárceres, nos quartéis, nas ruas, nas selvas do Araguaia e onde seja possível, a sorte do regime militar-fascista estará definitivamente selada". O chamado impasse político a que chegou o país jamais se romperá com diálogos e propostas de institucionalização da exceção, mas com a intensificação e ampliação da resistência democrática, persistente e em diferentes níveis, com a preparação e o desencadeamento de lutas revolucionárias. Será um combate prolongado com alternâncias de vitórias e derrotas parciais. É de se supor que os generais, quando se virem completamente isolados e desmascarados, tentem ainda manobras enganadoras, arvorem novas bandeiras, substituam os mais queimados por outros pseudo-renovadores visando à permanência no poder e ao prosseguimento da política de contenção do movimento popular. Sempre haverá oportunistas e falsos democratas dispostos a oferecer-lhes cobertura. Porém, não se lhes deve dar tréguas, é indispensável levar até o fim a luta contra os inimigos da democracia.

A conquista da liberdade política é perfeitamente viável, desde que se lute ampla e revolucionariamente por ela. Abrirá novos horizontes ao povo brasileiro que sempre viveu subjugado e aspirou com intensidade a uma vida livre e independente.

A democracia popular

Mas a conquista da liberdade política, sendo na atualidade um dos objetivos primordiais do movimento revolucionário, não esgota em si mesma a finalidade da luta popular. Ainda que a mais importante tarefa nos dias que correm seja pôr abaixo a ditadura militar, as forças progressistas não podem limitar-se a ela. Ao mesmo tempo que se empenham em desmascarar e isolar o governo dos generais e construir ampla frente única a fim de derrubá-lo, esforçam-se por elevar a consciência política do povo tendo em vista criar condições favoráveis ao surgimento de um regime inteiramente novo, após a caída do fascismo. Os brasileiros estariam condenados a viver escravizados politicamente se não enfrentassem a perspectiva de se bater, num plano mais alto, por uma nova democracia, de cunho popular.

Seria ilusão pensar que dentro do quadro das atuais classes dominantes e da dominação do imperialismo fosse possível obter e consolidar a verdadeira liberdade. Um antigo deputado pela Bahia costumava dizer, em 1946, que democracia no Brasil era uma planta tenra que exigia redobrados cuidados para desenvolver-se. Essa plantinha, que a seu ver brotara após a II Guerra Mundial, foi logo depois pisoteada. Com dificuldades, voltou a reerguer-se uns anos mais tarde e no princípio da década de 60 ganhou certo viço. Em 1964, os militares trataram de arrancá-la pela raiz. Não há cuidados capazes de fazê-la vingar enquanto o país estiver sob o domínio das forças retrógradas. Democracia é uma questão que diz respeito às classes e à luta de classes. Jamais existiu democracia pura, abstrata, neutra em relação aos setores sociais em choque. No regime burguês, sempre esteve condicionada pelas conveniências dos exploradores, nunca passou de democracia para a minoria, embora os trabalhadores e as massas populares tivessem lutado com o fim de ampliá-la e conseguissem certos êxitos. É inegável que os regimes predominantes no Brasil, nestes 153 anos desde a Independência, têm-se caracterizado pela negação de direitos cívicos à maioria da população e por sistemas fechados, elitistas, de constituição do poder. Até fins do século XIX, imperou a autocracia. Com a instauração da República, expandiu-se o militarismo. Atualmente, sob o regime fascista, a elite dirigente, ainda mais reduzida, forma-se na Escola Superior de Guerra. Seu núcleo, segundo declarações do Gen. Jorge Correia, chefe do EMFA, conta com "1.294 civis e 1.621 militares", selecionados entre os ferrenhos inimigos da liberdade e do progresso social. Isso se deve ao domínio prolongado de forças internas extremamente reacionárias e à predominância do capital estrangeiro, imperialista, cujas particularidades políticas, acentuadas por Lênin, são a reação em toda linha e a intensificação da opressão nacional. Noutros termos, deve-se ao fato de não ter havido no país uma revolução popular que destruísse os alicerces do atraso e do reacionarismo.
Vida democrática e formas democráticas de governo em nações como o Brasil somente poderão existir tendo por base regimes progressistas, representando interesses progressistas e sob a direção de correntes progressistas. Onde prevalecem regimes conservadores - mesmo que, em determinadas conjunturas, se constituem governos que respeitem as liberdades fundamentais - a tendência é o retrocesso político. Se os brasileiros quiserem viver com liberdade têm de substituir as atuais classes dominantes, deslocar seus representantes do poder, implantar uma democracia popular.

Esse tipo de democracia distingue-se tanto da democracia burguesa quanto da democracia proletária, socialista. A democracia burguesa, surgida na fase de ascenso do capitalismo, está em decadência por toda parte, restringe-se sempre mais e debate-se em crise permanente. Sua função principal - assegurar a dominação dos capitalistas - já não pode ser realizada pelos velhos métodos, pois elevou-se a consciência política das grandes massas. Recorre à escamoteação dos direitos eleitorais, à adulteração do decantado sistema de representação proporcional, à suspensão das liberdades. E nesse processo chega aos regimes autoritários quando não dá lugar ao aparecimento do fascismo. A democracia burguesa, em nosso país, não tem qualquer possibilidade de prevalecer e cumprir um papel positivo. Aliás, nunca preponderou. Toda tentativa feita no sentido de estabelecer direitos políticos estáveis malogrou. Ainda que em determinados períodos da vida republicana se houvessem realizado eleições e o Parlamento exercesse função de certa utilidade, eleições e Parlamento não passaram de limitadas e medíocres expressões da vontade nacional e mesmo assim pouco respeitadas. As menores manifestações de atividade política independente e democrática das correntes progressistas tornaram-se alvo de represálias e logo foram abafadas. Se, no passado, a democracia burguesa, muito acanhada e sujeita a constantes golpes militares, revelou-se fragílima, no presente, quando o capitalismo acentua sua tendência à reação, é ainda menos consistente e viável.

Quanto à democracia proletária, ela corresponde a uma etapa mais avançada do desenvolvimento social. Visa à construção do socialismo e à liquidação da exploração do homem pelo homem. Apesar de ter sofrido rude golpe na União Soviética, com a traição dos revisionistas, floresce na Albânia, está destinada a predominar em todo o mundo com a derrocada do sistema capitalista. Sem dúvida muitos dos males que sofrem o nosso povo são oriundos do capitalismo e não apenas do latifúndio e da espoliação estrangeira. Mas esse tipo de democracia pertence à segunda etapa da revolução no Brasil. Será alcançado após a completa vitória do movimento nacional, popular e democrático.

Nas condições do nosso país, o que se impõe é a democracia popular. Democracia popular é um regime que representa o proletariado, o campesinato, as classes médias urbanas e, em certa medida, a parte da burguesia, ligada aos interesses nacionais, regime que só poderá efetivar-se com a subida dessas classes e camadas sociais ao plano dirigente de nação e com a conseqüente destituição dos que na atualidade ocupam esse lugar. Tais forças, que têm como núcleo a aliança operário-camponesa, são as únicas em condições de dirigir o país num rumo progressista, de resolver questões estruturais que reclamam solução radical. Essa democracia será exercida conjuntamente por esses setores da população, tendo à sua frente o proletariado, já que a burguesia ou a pequena burguesia, aquela mais que esta, demonstram vacilação e inconseqüência no cumprimento das tarefas revolucionárias.

À democracia popular incumbe fundamentalmente solucionar os problemas da distribuição da terra para uso individual ou coletivo, da liquidação da espoliação estrangeira, do desenvolvimento econômico independente - o que significa enérgicas medidas contra os grupos monopolistas ligados ao capital financeiro internacional - da melhoria da situação dos trabalhadores, da liberdade e da autêntica independência nacional.

Só a implantação de uma democracia dessa natureza permitirá estabelecer-se a soberania do povo e criar um poder popular representativo da maioria da nação. Tão-somente ela assegurará os direitos das amplas massas da cidade e do interior; reorganizará as forças armadas com vistas a servir o povo; implantará a justiça popular; instituirá a escola e a universidade do povo; difundirá em larga escala a cultura nacional e popular. Enfim, dará nascimento a um regime democrático, antiimperialista, antilatifundiário e antimonopolista - tal como almeja a enorme maioria dos que vivem neste grande país.

A democracia popular é, sem dúvida, um regime transitório no qual se devem criar as condições para o avanço mais breve possível no sentido do socialismo.

A liberdade política e a democracia popular serão conquistadas, quaisquer que sejam as vicissitudes a enfrentar. As ditaduras e sistemas assemelhados se multiplicam, é verdade, mas os povos a eles se opõem e se levantam resolutamente. No Brasil e no mundo marcha-se para uma situação revolucionária. As classes dominantes já não podem governar como antes, mutilam ou destróem antigos métodos que outrora lhes garantiram a estabilidade e que agora se voltam irremediavelmente contra elas. Tampouco os povos estão dispostos a se submeter ao despotismo e a viver como vivem. Buscam meios e maneiras de sacudir o jugo da opressão e da exploração. Essa forma de conflito - das classes dominantes tentando cercear ao máximo a liberdade e reprimindo violentamente as massas populares, e dos povos batalhando por seus direitos e pela democracia - tende a se aguçar mais e mais, somente será resolvida com a revolução.

Os generais brasileiros acreditam poder sustentar o regime caduco e defendê-lo para todo o sempre. Não há Ato Institucional e métodos repressivos capazes de manter indefinidamente a ditadura. Eles agem como os que pensam ser possível conter um rio bloqueando seu curso com barragens de areia. Mas o rio, mesmo contido, continua aumentando a pressão, procurando uma saída. Afinal, rompe os obstáculos e prossegue seu caminho. As mudanças que a sociedade brasileira está a exigir podem ser adiadas artificialmente por certo tempo. Os óbices levantados terminarão ruindo. O descontentamento vai se acumulando, ganhando força, acabará transformando-se em desafio e luta aberta. O povo compreenderá que sem luta - e luta armada - jamais alcançará a realização de seus anseios que correspondam às exigências da vida contemporânea.
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* Escrito por João Amazonas e publicado no jornal "A Classe Operária", maio de 1976.