EL CHE RODANDO POR CALLAO: O TROTSKISMO E AS GUERRILHAS LATINOAMERICANAS
Por Alvaro Bianchi http://blogconvergencia.org
Ya se que estoy piantao, piantao, piantao… No ves que va la luna rodando por Callao; que un corso de astronautas y niños, con un vals, me baila alrededor… Baila! Veni! Vola! (Astor Piazzola, Balada para un loco.)
Em julho de 1962, Ángel Bengochea, uma das principais lideranças de Palabra Obrera, organização da qual faziam parte Nahuel Moreno e Ernesto Gonzáles, viajou a Cuba, com a finalidade de obter recursos financeiros e apoio político para a luta travada por Hugo Blanco no Peru. Foi acompanhado por outros quatro militantes que receberam treinamento militar na ilha. Durante a estadia encontrou-se com Ernesto Che Guevara, com quem discutiu a situação latinoamericana e peruana em particular. A partir de fevereiro de 1963 esse grupo retornaria à Argentina e reassumiria suas posições em Palabra Obrera.
Bengochea já estava, entretanto, convencido da importância de lançar um foco guerrilheiro na província de Tucumán. Logo após seu retorno discutiu a proposta em uma reunião do Secretariado da organização, sem obter, entretanto, apoio. As diferenças eram, entretanto, grandes e a reunião decidiu que Bengochea e seus aliados poderia realizar uma experiência política fora do partido, mas mantendo com ele vínculos políticos solidários. Deixou, entretanto, em poder da direção uma carta de 5 de agosto de 1963 endereçada à redação de Palabra Obrera na qual informava sua renúncia à organização. Muito embora afirmasse concordar com seu programa, dizia diferir “fundamentalmente nos meios táticos para desenvolver a luta de massas e seu ascenso ao poder”.1 A resposta pública de Palabra Obrera demonstrou grande respeito pelo caráter revolucionário de Bengochea e manifestou o desejo de no futuro restabelecer “a frente que hoje se fissura”.2
Mas não houve tempo para o reencontro. Bengochea morreu tragicamente em 1964 na explosão acidental de um pequeno arsenal antes mesmo de iniciar os combates planejados. Na explosão morreram cinco combatentes, uma família de quatro pessoas, que morava num apartamento do mesmo edifício e um bombeiro vítima de acidente durante o resgate. O laudo de perícias da polícia argentina revelou que havia no local entre 100 e 150 quilos de pólvora aluminizada, cuja explosão deveu-se, provavelmente à má manipulação. No local a polícia encontrou documentos da organização, até então desconhecida pelas forças repressivas. Imediatamente foram feitas prisões e o movimento foi rapidamente desarticulado, revelando a precariedade e o despreparo técnico-militar do pequeno grupo.
Mais tarde foi a vez de Daniel Pereyra, militante do argentino Partido Revolucionário de los Trabajadores (PRT) e enviado por este ao Peru para auxiliar Hugo Blanco. Pereyra aderiu prontamente a uma linha foquista e putchista que culminou no dia 15 de abril de 1962 no assalto ao Banco de Crédito de Miraflores em Lima. Apesar de bem sucedido, rapidamente a polícia identificou um dos participantes, prendeu todo o grupo liderado por Pereyra e, logo após, o próprio Hugo Blanco. Posteriormente este último criticou duramente as tentações putschistas existentes em sua organização:
“Ao falar deste desvio ‘putchista’ não me refiro, lógico, à nossa luta armada e sua preparação, às milícias e à guerrilha. Tudo isso está dentro de nossa concepção. Considero que nossa ação neste caso foi, de maneira geral, correta. O que se pode marcar como manifestações da pressão ‘putchista’ são: os assaltos a bancos; a falta de importância dada à construção do partido; certo aceleramento artificial, em alguns momentos, nos meses anteriores à queda de Pereyra; falta de uma análise mais atenta a cada fase e de cada fase. ”3
No próprio PRT essas pressões se fizeram sentir. No começo dos anos 1960, Palabra Obrera, havia se unificado com a Frente Revolucionario Indoamericano Popular (FRIP), liderada por Mario Santucho. Enquanto Palabra Obrera enfatizava a intervenção nos sindicatos peronistas e tinha presença mais forte em Buenos Aires, a FRIP concentrava suas forças nas províncias de Santiago e Tucumán. Os acordos realizados pelas duas alas permitiram que o partido obtivesse seus primeiros sucessos: no norte do pais a consolidação da atividade política nos engenhos de açúcar, a eleição de um deputado e uma forte inserção nas lutas dos trabalhadores; no centro, a recuperação do trabalho sindical de Avellaneda, a extensão da inserção em metalúrgicos de Matanza, a consolidação da presença na zona norte de Buenos Aires; no movimento estudantil o lançamento e fortalecimento de uma corrente estudantil antiimperialista e revolucionária.4
As razões para o otimismo eram grandes. A unificação permitira superar a crise de Palabra Obrera e o provincianismo da FRIP, mas os acordos programáticos e estratégicos avançavam mais lentamente e, em alguns casos, beiravam o formalismo. Esse é o caso dos diferentes entendimentos presentes na nova organização sobre a “luta armada”. Os documentos oficiais afirmavam que a luta armada era “o único meio para derrotar o imperialismo e a burguesia”, mas estava longe de confundir essa luta com as experiências guerrilheiras e foquistas. Essa compreensão era, entretanto, mais nítida entre os militantes provenientes de Palabra Obrera, os quais haviam combatido as tendências guerrilheiristas na organização, lideradas por Ángel Bengochea.
A respeito desse combate, o informe de atividades do primeiro congresso do partido unificado FRIP-Palabra Obrera, declarava: “Todos os companheiros, assim como valorizam nossa atividade no movimento operário (…) devem valorizar nossa atividade contra o aventureirismo putchista como um dos grandes acertos da organização.” O documento também avaliava positivamente a luta teórica travada por Nahuel Moreno contra as teses de Che Guevara e afirmava: “Toda nossa atividade é uma réplica e uma alerta contra a única saída que Che Guevara receita para os povos oprimidos da A[mérica]. L[atina].”5
Um ano depois, já com o nome de Partido Revolucionário de los Trabajadores (PRT), foi realizado o 2º Congresso, o qual constatou que a organização política que resultou da unificação era não apenas “um P[artido]. nacional, como ainda o único P[artido]. marxista r[evolucionário]. de extensão, penetração e programa nacional.”6 Mas logo as pressões foquistas e putchistas começaram a se manifestar, implicando em uma séria ruptura entre os dois grupos no começo de 1968. A ruptura de Santucho deu origem à fração Partido Revolucionário de los Trabajadores (El Combatiente) – PRT(EC) – e à fundação em 1970 do Ejercito Revolucionário del Pueblo (ERP).
Ao passo em que procurava conciliar ecleticamente trotskismo, maoísmo e castrismo, o PRT(EC) desenvolvia sua política guerrilheira, caracterizando que num primeiro momento a guerra popular prolongada deveria assumir a forma de guerra civil defensiva.7 Os ganhos políticos no movimento sindical do campo e da cidade obtidos nos anos anteriores, principalmente no norte da Argentina, foram rapidamente consumidos nessa aventura. Quando os trabalhadores urbanos deram início a suas grandes mobilizações, não sobrava ao agora PRT(EC) ao ERP senão comemorar pequenos e insignificantes feitos.8
Às vésperas do 5º Congresso do PRT(EC), em um grupo de militantes desse partido encaminhou para a votação do Comitê Central uma resolução de autocrítica na qual, embora mantendo-se no âmbito da guerrilha, denunciava os desvios foquistas de Mario Roberto Santucho, chamado de Carlos, a direção unipessoal das operações militares e dava um quadro das reais forças da organização: menos de 300 militantes, escassamente organizados e mal preparados política e tecnicamente.9
Na Internacional uma batalha política e teórica tinha lugar. A influência das ideias dos dirigentes cubanos era cada vez mais visível. Escrevendo em 1968 a respeito do impacto da revolução cubana no continente latino-americano o trotskista boliviano Hugo Gonzalez Moscoso anunciou: “nas condições que rpevalecem na América Latina os resultados obtidos pela guerrilhas em Cubapodem ser realizados em qualquer país. Além do mais, afirmo que a guerra de guerrilhas é incontrovertivelmente o caminho que os revoluciona´rios devem tomar para liberar seus povos da exploração capitalista e imperialista.”10 Para Moscoso a guerrilha não era apenas uma tática e sim uma estratégia que poderia ser generalizada para todos os países subdesenvolvidos:
“O método de guerrilha advogado pelos cubanos é aplicável a todos os países subdesenvolvidos, embora sua forma possa variar de acordo com as particularidades de cada país. Naqueles países onde existe uma grandes massas camponesas com um problema da terra não resolvido, as guerrilhas podem adquirir sua força dos camponeses; a luta de guerrilha pode levar essas massas à ação, resolvendo o problema agrário com armas em punho, como ocorreu em Cuba, começando na Sierra Maestra. Mas em outros países o proletariado e a pequena burguesia radicalizada das cidades pode prover as forças da guerrilha.”
Nos meses que precederam a realização do 9º Congresso Mundial da QI-SU uma luta política começou a ser preparada em torno da questão latino-americana. A resolução política mundial, redigida pelo dirigente do Socialist Workers Party, apontava as novas tendências da situação internacional fortemente marcada pela emergência da crise da economia capitalista, a contra-ofensiva da resistência vietnamita no sudoeste asiático e as novas e massivas manifestações nos grandes centros urbanos. Publicada no início de 1968, as teses anteciparam os levantes estudantis e operários que tiveram lugar nos meses subsequentes.
As teses foram aprovadas por ampla maioria pelo comitê executivo internacional, mas Livio Maitan preferiu abster-se na votação. Pouco depois publicou uma longa carta na qual considerava que proposta de resolução política era “um documento insuficiente”. Maitan apresentou críticas a vários pontos da resolução as quais não faziam senão preparar sua conclusão: para romper sua marginalidade o trotskismo deveria ser capaz de colocar-se à frente do movimento de massas e conduzi-lo à vitória nas lutas revolucionárias “de um ou mais países”. Tornava-se, assim, fundamental, identificar onde essas vitórias poderiam ocorrer e “subordinar tudo o mais à necessidade elementar de um sucesso nesses países e, mesmo, se necessário, em um único pais. Tudo o demais virá depois.”11
Fortemente impressionado pelos sucessos obtidos pelos guerrilheiros cubanos, pelo chamado destes a um levante revolucionário continental e pelo mobilizações que tinham lugar na América Latina, Maitan achava que era a hora de apostar todas as fichas que a Quarta Internacional havia acumulado:
“Nós devemos colocar tudo principalmente em um setor da América Latina e vocês sabem muito bem qual é. Devemos explorar o período preparatório do congresso para convencer todo o movimento a operar na prática, todo dia, com esta perspectiva. Permitam-me expressar-me de modo um pouco paradoxal: é necessário entender e explicar que no presente estágio a Internacional será construída ao redor da Bolívia.”12
A carta do trotskista italiano foi apenas seu primeiro passo. Logo a seguir escreveu uma resolução sobre a América Latina na qual destacava os novos critérios e linhas de uma estratégia revolucionária. O tom da resolução era claramente exagerado e supervalorizava os enfrentamentos de classe existentes na América Latina, caracterizando não apenas um novo “período de explosões revolucionárias e conflitos” em todo o continente, como, também, uma “luta armada em diferentes níveis contra a classes dominantes nativas e o imperialismo e de prolongada guerra civil em uma escala continental.”13 Em um de seus momentos momentos mais exagerados, seu autor chega a afirmar a existência de uma “situação de crise pré-revolucionária” pela qual estaria passando “atualmente a América Latina em escala continental”.14
A presença de governos ditatoriais e a forte repressão contra os movimentos sociais em vários países, não eram analisadas em profundidade pelo documento, ou então apareciam como efeitos dos conflitos políticos ou da incapacidade dos governo locais apresentarem soluções estáveis para os problemas econômicos e sociais mais importantes.15 Prevalecia, enfim, uma análise simplificada e otimista, fortemente impressionada por eventos localizados da luta de classes que eram considerados como expressão de uma ascensão generalizada dos movimentos populares.
A caracterização preparava o caminho para a afirmação de uma nova estratégia continental. Depois de afirmar sem se dar o trabalho de demonstrar que a hipótese mais provável era de que os camponeses suportassem inicialmente o peso maior da luta e que a direção do movimento coubesse à “pequena burguesia revolucionária”, o documento apresentava aquele que considerava ser a perspectiva mais realista para o Continente: “uma luta armada que pode durar muitos anos”.16
A perspectiva dos conflitos assumirem a característica de uma luta armada entre as forças encontrava-se difundida entre os trotskistas latino-americanos e havia encontrado sua maior expressão na luta de Hugo Blanco no Peru. A novidade no documento redigido por Maitan é que este propunha que a luta armada assumisse uma forma específica – a guerra de guerrilhas rural – e que esta forma tática adquirisse um caráter estratégico e generalizado em todo o continente latino-americano: “Mesmo no caso de países nos quais grandes mobilizações operárias e conflitos de classe nas cidades possam ocorrer primeiro, a guerra civil assumira a forma de luta armada, na qual o principal eixo durante todo um período será a guerrilha rural”.17
O caráter geral dessa nova estratégia implicava que mesmo naquelas situações nas quais a guerrilha parecesse vir do exterior ou ser unilateral, como no caso as ações de Che Guevara na Bolívia, ela poderia “estimular uma dinâmica revolucionária”.18 A análise concreta das situações concretas cedia lugar, assim à proposição de formas de lutas que não decorriam da relação de forças efetiva nem das condições reais de operacionalização de uma política.
As teses de Maitan geraram uma pronta resposta por parte dos trotskistas estadunidenses. Joseph Hansen, do Socialist Workers Party, logo apresentou um documento de crítica no qual denunciava o desvio guerrilheirista de Maitan. O antigo secretário de Trotsky colocou o dedo na ferida ao caracterizar o projeto de resolução latino-americana era “um reflexo bastante fiel das opiniões expressas publicamente pela direção cubana” e uma tentativa extrema de “adaptar-se a sua posição”.19 Essa atitude perante a direção de Fidel Castro e seus companheiros fazia com que o documento latino-americano destacasse sua contribuição à formação de uma nova vanguarda revolucionária no Continente, mas silenciasse perante a acomodação dos cubanos às diretrizes da política externa da União Soviética e ao sectarismo destes para com os trotskistas. O fato dos “cubanos não terem saldado ainda suas contas com o stalinismo” permanecia oculto no projeto de resolução sobe a América Latina.20
A questão principal para Hansen era que ao subordinar toda a política à tática da guerrilha rural, transformada agora em uma estratégia, a proposta de resolução redigida por Maitan deixava de lado a tarefa chave de toda a vanguarda revolucionária, “a construção do partido marxista revolucionário”. Segundo o trotskista estadunidense, corria-se sério risco de transformar o partido em um acessório do desenvolvimento da luta armada, ao qual caberiam as funções de recrutar militantes-guerrilheiros, servir como um elo entre a guerrilha e o movimento de massas, contribuir com a direção de grupos não guerrilheiros e prestar solidariedade internacional.21
Os argentinos do PRT(LV) encontravam-se em uma situação delicada nesse debate. Anos de afastamento da militância concreta da Internacional transformaram os trotskistas latino-americanos em meros coadjuvantes desse debate que se fazia em seu nome. Os dirigentes do PRT(LV) estavam estavam cientes dos limites de sua intervenção e adotaram uma atitude cautelosa nas discussões:
“Trata-se de sermos conscientes de que nossa elaboração por ser independente, inevitavelmente deve padecer de deformações ou ser diretamente equivocada. Devemos evitar todo provincianismo. Isso significa adotar uma atitude sumamente modesta frente aos documentos e posições dos companheiros da direção internacional, não acreditar que porque adotamos há muitos anos essas posições elas são corretas pelo simples fato de que fomos nós que as adotamos. Pelo contrário, dado nosso isolamento, a perspectiva deu que tenham deformações, exageros e diretamente estejam equivocadas é a possibilidade mais provável”.22
Essa atitude não impediu, entretanto, que procurassem estudar e discutir os documentos no âmbito do CC e que produzissem um texto no qual avaliavam as diferentes posições em pugna. Coincidiam com a proposta de resolução internacional discutida, a qual “responde essencialmente bem ao caráter da nova etapa” e afirmavam a intenção de “aprová-lo e fazer-lhe uma série de críticas parciais”.23 O principal problema desse documento seriam suas lacunas. Ele não previa a possibilidade de que na nova etapa se multiplicassem “todas as formas de luta e organização”. Deixando em aberto esta questão corria-se o risco de superlativizar uma forma de luta temporária e transitória, absolutizando-a. Esse era o caso da guerrilha.
Longe de recusar que a luta armada pudesse assumir uma forma guerrilheira, o PRT(LV) considerava que essa era uma das possibilidades, muito embora a “insurreição operária” tivesse sido a melhor para o movimento.24Era, pois, contra “a superestimação da guerra de guerrilhas e a subestimação das possibilidades de insurreição operária urbana” que os argentinos se voltava. Em grande medida coincidiam nisso com as críticas de de Joseph Hansen, muito embora percebessem que a atitude predominante no trotskismo estadunidense era fortemente propagandista, subestimava as guerrilhas realmente existentes e até certo ponto passiva a perante os grandes acontecimentos revolucionários mundiais.25
No Congresso Mundial, realizado em 1969, a posição de Maitan foi vencedora, obtendo cerca de dois terços dos votos. Fiel à linha guerrilheira a maioria do Congresso reconheceu o PRT(EC) como seção oficial, reduzindo a fração que se originava de Palabra Obrera à condição de simpatizante. Anos mais tarde, o dirigente do Socialist Workers Party, Jack Barnes, narrou:
“Uma das piores medidas foi tomada no mesmo Congresso Mundial de 1968, quando a ala de [Mario Roberto] Santucho foi reconhecida como a seção e o camarada [Nahuel] Moreno foi expulso do Comitê Executivo Internacional. Nesse Congresso Mundial não se nomeou nenhum membro da corrente de Moreno para o CEI. Todos e cada um dos representantes argentino eram do PRT (Combatiente), apesar da organização argentina ter se dividido no meio.”26
Uma aguda luta fracional teve lugar, então, para aplicar essa linha política, muito embora setores importantes do trotskismo latino-americano fossem contrários a ela. Paralelamente, violando o acordo realizado no Congresso, o qual pressupunha uma relação fraternal entre as diversas alas da Quarta Internacional na Argentina, um violento ataque político contra o PRT(LV) foi lançado pelos partidários de El Combatiente publicamente, com a cobertura, ou mesmo com o apoio, da direção internacional.27
Apesar de terem perdido o status de seção oficial, a participação de delegados do PRT(LV) ao lado do SWP no congresso abriu as portas para uma intervenção mais efetiva no debate internacional e permitiu que gradativamente combatessem sua marginalidade e provincianismo. Assim, poucos meses após o congresso mundial e expressando claramente os debates em seu interior os argentinos elaboraram um conjunto de teses sobre a situação latinoamericana. O documento caracterizava o início de uma nova situação na América Latina, na qual a revolução se deslocava novamente para as cidades.28 Os levantes insurrecionais ou semiinsurrecionais que haviam enfrentado o exército e a polícia de modo muito mais eficaz do que a guerrilha tinha feito até então indicavam que mais uma vez o movimento operário com suas greves, ocupações e passeatas voltava para o centro da política.
Essa situação coincidia com a derrota da maior parte das guerrilhas rurais inspiradas pela revolução cubana, dentre elas a boliviana, que contava em suas fileiras com o próprio Ernesto Che Guevara, assassinado em 8 de outubro de 1967. A Olas, criada por Che Guevara e Fidel Castro em 1967 para difundir a sua estratégia revolucionária rapidamente perdeu sua capacidade de mobilização, convertendo-se em um escritório de propaganda. O grupo dirigente cubano encontrava-se assim na difícil situação de adaptar a estratégia da guerrilha rural a uma situação na qual a revolta tinha lugar nas cidades ou submeter-se à orientação soviética. O autor do projeto de teses colocava esse dilema do seguinte modo:
“Adaptar a nova linha seria um progresso teórico da direção fidelista, já que significaria o abandono do fetichismo dogmático do campesinato como única classe revolucionária e da guerrilha rural como única estratégia válida, para começar a reconhecer a importância da classe operária e da população urbana. Daí a reconhecer a importância do programa de transição, do partido revolucionário e de todos os métodos há uma distância muito menor do que com a política atual. Inclinar-se pela coexistência pacífica significaria acelerar o processo de burocratização dentro de Cuba.”29
O desenvolvimento do castrismo deixou claro que sua opção foi pela coexistência pacífica. Em 1970 a Olas era pálido espectro do que havia sido apenas três anos antes. Mas para os grupos guerrilheiros latino-americanos essa situação não aparecia tão clara assim. Da mesma forma o debate ainda não estava resolvido na Internacional. O PRT(EC) encontrava-se ativo e preparava o que considerava ser um grande salto, a formação do Ejercito Revolucionário del Pueblo (ERP). Na Bolívia, outra experiência guerrilheira se desenvolvia com o apoio da direção da QI-SU, a preparação da guerrilha promovida pelo Partido Obrero Revolucionário (Combate) – POR(C) –, dirigido por Hugo Gonzáles Moscoso, e no Brasil dirigentes do Partido Operário Comunista (POC) aproximaram-se da QI-SU.
A partir de 1971 a resistência ao guerrilheirismo dentro da Internacional conformou Tendência Leninista Trotskista (TLT). O documento principal dessa tendência Argentina and Boliva: the balance sheet constituiu um marco na QI-SU. Fazendo um balanço implacável das aventuras do PRT(EC) e do POR(C) narradas em prosa e verso pela maioria da Internacional, o documento advogava energicamente em favor de um retorno a uma política de intervenção no movimento de massas e de construção de partidos revolucionários. Nadava-se, entretanto, contra a corrente.
Em 1971 a lembrança da Olas ainda era forte e a guerrilha ainda tinha seu apelo, muito embora se mostrasse cada vez mais ineficaz na América Latina. Para a maioria da QI-SU, o caminho das ações exemplares era o aconselhado. Apesar do fascínio que essas ações exerciam sobre as organizações trotskistas europeias, estas tinham um conhecimento muitas vezes superficial a respeito do desenvolvimento da guerrilha na América Latina. As tendências predominantes no PRT(EC) o afastavam cada vez mais do programa da Quarta Internacional ao invés de aproximá-lo como acreditava, por exemplo, Livio Maitán.
Não foi necessário muito tempo para que essas tendências ficassem evidentes até mesmo para os mais entusiastas da experiência guerrilheira. Em seu 5º Congresso o PRT-ERP anunciava explicitamente essa dinâmica: “O movimento trotskista, é necessário esclarecer, agrupa agrupa setores heterogêneos. Desde aventureiros contrarrevolucionários que se servem de sua bandeira prostituindo-a até consequentes revolucionários.”30Supostamente os revolucionários eram aqueles que apoiavam sua aventura, mas a opinião a respeito destes mudaria logo que as fricções e frações começaram a surgir na guerrilha argentina. E elas se sucederam com uma velocidade impressionante.
Em 1970, Daniel Pereyra romperia com o então chamado PRT-ERP para fundar o Grupo Obrero Revolucionário (GOR), divergindo do militarismo exacerbado de Santucho mas mantendo-se, ainda, no campo do foquismo. Outros militantes constituiriam o PRT (Fracción Roja), em 1973, com críticas similares às de Pereyra, de cuja organização se aproximaram e à qual posteriormente aderiram. Pouco depois, contrariando as otimistas e ingênuas esperanças hipotecadas pelo trotskismo europeu, Santucho romperia com a Internacional. O documento de cisão demonstrava as tendências burocráticas e ultracentralistas dessa fração, bem como seu ecletismo teórico e político.31 Ao longo dos primeiros anos da década de 1970 as poucas organizações políticas apoiadas pela maioria do Secretariado Unificado da Quarta Internacional virtualmente desapareceram na América Latina, vítimas da brutal repressão à qual foram submetidas ou da falência política.32
Apesar dos fracassos iniciais a maioria da Internacional continuava, entretanto, apostando no sucesso da estratégia guerrilheira, mesmo quando o caminho oposto se mostrava mais realista. Enviado à Argentina em 1973 para defender as teses da maioria do Secretariado Unificado, às vésperas do X Congresso do Secretariado Unificado da Quarta Internacional, Daniel Bensaïd preferiu reunir-se primeiro com as pequenas células militarizadas da pequena Fracción Roja do Partido Revolucionário de los Trabajadores (Combatiente) e só mais tarde com o Partido Socialista de los Trabajadores (PST), o qual organizou em Buenos Aires uma plenária com “um bom milhar de militantes”. Mais tarde, em Córdoba epicentro dos conflitos sociais na Argentina da época reuniu-se com mais de 200 militantes do PST, em grande parte operários, e logo a seguir com “os camaradas da Fração Vermelha”, “uma pequena meia-dúzia”.33
A luta no Secretariado Unificado chegava a seu ápice.34 Em sua autobiografia Bensaïd deixou toda sua fleuma de lado para expor seu ressentimento, devido ao tratamento descortês que recebeu dos militantes operários cordobeses trinta anos antes. Referindo-se ao dirigente político da regional de Córdoba, como “un certain César”, o filosofo parisiense eximiu-se de homenagear César Robles, secretário-geral do PST, sequestrado e brutalmente executado pela Alianza Anticomunista Argentina em novembro de 1974. Embora a distância do tempo tenha lhe permitido fazer um balanço parcialmente crítico da aventura guerrilheira estimulada pelo trotskismo europeu, “el estudiante del Bairro Latino”, como era jocosamente chamado pelos argentinos, foi incapaz de concluir que a orientação política de “un certain César” serviu, ao menos para preservar uma corrente política na Argentina. ______________________________________________________________________________________________________
Notas:
1Ángel Bengochea. A la Dirección Nacional de Palabra Obrera. Palabra Obrera, Buenos Aires, n. 345, 26 ago. 1963, p. 5.
2Idem. Esse respeito às diferenças e aos desacordos políticos é, entretanto, uma exceção na trágica história do trotskismo argentino. A ruptura de Bengochea foi um duro golpe para Nahuel Moreno que considerou em sua entrevista-testamento que um dos maiores erros de sua vida tinha sido não ter feito tudo para evitá-la. Ver Sergio M. Nicanoff e Axel Castellano. Las primeras experiencias guerrilleras argentinas: la historia del “Vasco” Bengochea y las Fuerzas Armadas de La Revolucion Nacional. Cuaderno de Trabajo del Centro Cultural de la Cooperación, Buenos Aires, n. 29, 2004, p. 59. A narrativa de Nicanoff e Castellano encontra-se amparada em pouquíssimas fontes, dentre as quais a mais importante é Ernesto Gonzales, um dos atores dessas discussões. Mesmo assim, creem possível afirmar, baseados unicamente em uma “vasta experiência histórica”, que é pouco provável que a solução do conflito tenha sido amigável. Pode-se, afirmar, entretanto, baseados em uma “vasta experiência” historiográfica, que preconceitos não são documentos confiáveis e que os autores deveriam se dar o trabalho de tentar provar o que afirmam.
3Hugo Blanco. Terra ou morte. São Paulo: Versus, 1979, p. 95.
4Frip – Palabra Obrera. Primer congresso del Partido Unificado Frip – Plabra Obrera: informe de actividades, n. 5, mar. 1985 (mimeo.). (Archivo Leon Trotsky, São Paulo.) Às vésperas da unificação Palabra Obrera resumia-se a um pequeno número de quadros com grande experiência nas lutas dos trabalhadores mas profundamente marcados pelas características sindicalistas e nacionalistas da organização. Durante quase 20 anos essa corrente esteve virtualmente afastada da Quarta Internacional.
5Idem, p. 8.
6Partido Revolucionário de los Trabajadores. Informe de actividades: 2º Congresso PRT. 1966 (mimeo.), p. 1-2. (Archivo Leon Trotsky, São Paulo.) O tom do texto é claramente triunfalista e está escrito de uma forma e com um estilo muito diferente daquele que predominava em Palabra Obrera. É, pois, possível que ele tenha sido redigido por um dirigente proveniente da FRIP.
7“5) En su primera etapa la lucha armada será esencialmente guerra civil y se irá transformando paulatinamente en guerra nacional antiimperialista. 6) Por varios motivos la guerra revolucionaria tendrá carácter prolongado y será estratégicamente- defensiva porque la librarán los revolucionarlos, la clase obrera y el pueblo, con minoría de fuerzas ante un enemigo común mucho más poderoso que actuará a la ofensiva; aunque todas las operaciones tácticas serán ofensivas y libradas, dentro de lo posible, con mayoría de fuerzas.” (Carlos Ramirez, Sergio Domecg e Juan Candela. The only road to worker’s power and socialism. International Information Bulletin, Nova York, n. 4, Oct. 1972, p. 24.) Carlos Ramirez, Sergio Domecg e Juan Candela eram os pseudônimos de Mario Roberto Santucho, Oscar Demetrio Prada e Félix Helio Prieto.
8O primeiro número do jornal Estrella Roja, do ERP, enumera as insignificantes ações militarizadas levadas a cabo. O registro inicial já dá uma amostra do que vem a seguir: “El comando Iver Tejada del ERP exproprio un mimeografo y una máquina de escribir em la Agencia de INTA de Metan (Salta)“. (El E.R.P. en acción. Estrella Roja, n. 1, abr. 1971, p. 6.
9“EL CC de octubre de 1969 mantiene y confirma en lo esencial el curso de la desviación foquista y voluntarista y su método de análisis metafísico. (…) Al realizarse ese CC las fuerzas del partido eran aproximadamente las siguientes: Alrededor del 100 mil[itantes]. Veamos para qué partido este CC vota la guerra revolucionaria a 5 meses: en su conjunto tenemos bastante menos de 300 militantes, incluyendo a todos los que revistan como tales, y de los mismos ni siquiera la mitad se proxima a lo que debe ser un militante profesional. Excepto el norte, las distintas zonas casi no tienen obreros (Córdoba 5 obreros, Rosario 3 obreros, S[anta]. Fe ninguno, La Plata ninguno, en las 3 zonas de B[ueno]s. A[aire]s. 25 obreros).” Grupo Obrero Revolucionário. Proyecto de Resolucion del C.C. De Autocritica y Convocatoria al Vº Congreso, presentado por Candela, Bernardo, Polo, Alonso y Matías. – (no fue considerado por el CC). 1969. (El Topo Blindado. Fondo Documental de las Organizaciónes Político-Militares Argentinas, Buenos Aires).
10Hugo González Moscoso. The cuban revolution and its lessons. In: Ernest Mandel (ed.) 50 years of world revolution: an International Symposium. Nova York: Pathfinder, 1973, p. 193.
11Livio Maitan. An insuficient document. International Information Bulletin. Discussion on Latin America (1968-1971), p. 15.
12Idem, p. 16.
13Draft resolution on Latin America: Nov. 1968. International Information Bulletin. Discussion on Latin America (1968-1971), p. 5.
14Idem, p. 7.
15Cf. idem, p. 4.
16Idem, p. 6.
17Idem, p. 7.
18Idme, p. 7.
19Joseph Hansen. Assesment of the draft resolution on Latin America. International Information Bulletin. Discussion on Latin America (1968-1971), p. 22.
20Idem.
21Idem, p. 23.
22Partido Revolucionário de los Trabajadores (La Verdad). Informe internacional. Comité Central PRT(LV), 23 mar. 1969 (mimeo.). (Archivo Leon Trotsky, São Paulo.)
23Partido Revolucionário de los Trabajadores (La Verdad). Informe internacional. Comité Central PRT(LV), 23 mar. 1969 (mimeo.), p. 1. (Archivo Leon Trotsky, São Paulo.)
24Idem, p. 3.
25Idem, p. 6-7.
26Jack Barnes. Los logros de la Fración Leninista-Trotskista. Cuadernos de Dicusión Internacional, Mexico D.F., n. 2, mai. 1978, p. 6. Segundo Barnes: “Santucho e seus camaradas guerrilheiristas conseguiram obter uma maioria acidental em um pleno do Comitê Central em 1968. As circunstâncias exatas continuam sendo obscuras, mas a organização cindiu-se basicamente ao meio. Os camaradas que estavam então com a maioria da Internacional e que atualmente são dirigentes da TMI simplesmente escolheram Santucho ao invés de Moreno. Apostaram tudo em favor do curso de Santucho, ainda que conhecessem plenamente seus desvios anteriores e as posições antitrtoskistas dessa direção, que haviam sido expressas no folheto intitulado ‘El Único Camino Hacia el Poder Obrero y el Socialismo’” (idem.) Este é um testemunho muito importante, uma vez que quando o escreveu, Barnes já havia rompido com Moreno e encontrava-se alinhado politicamente com os autores Livio Maitán, Pierre Frank e Ernst Mandel.
27Esses ataques foram denunciados por ninguém menos que o antigo secretário de Trotsky. Ver Joseph Hansen. In defense of the leninist strategy of party building. Mar. 1971. International Information Bulletin. Discussion on Latin America (1968-1971), p. 124-127.
28Partido Revolucionário de los Trabajadores (La Verdad). Proyecto de tesis sobre la situación latino-americana. Buenos Aires, jul. 1969 (mimeo.). (Archivo Leon Trotsky, São Paulo.) Esse texto foi escrito, provavelmente por Ernesto Gonzáles (comparar com Aníbal Lorenzo (Ernesto González). Uma estratégia continental. Buenos Aires: Partido Revolucionario de los Trabajadores (La Verdad), [1970] (mimeo.). (Archivo Leon Trotsky, São Paulo.)
29Partido Revolucionário de los Trabajadores (La Verdad). Proyecto de tesis sobre la situación latino-americana, p. 3.
30Partido Revolucionário de los Trabajadores. Resoluciones del V Congreso. Jul. 1970, p. 48. (El Topo Blindado. Fondo Documental de las Organizaciónes Político-Militares Argentinas, Buenos Aires).
31Segundo Santucho, um dos principais defeitos da Quarta Internacional estaria em “o debate permanente, a ‘continua discussão de ideias’ com a única ressalva de um formal acatamento da minoria à maioria, chegando até mesmo a expressar publicamente as diferenças.” (Ver Por que nos separámos de la Cuarta Internacional. El Combatiente, a. VI, n. 86, 17 ago. 1973, p. 8. No mesmo documento afirma-se a contribuição para o marxismo-leninismo e a teoria da guerra revolucionaria de “MaoTsé-Tung, Ho-Chi-Minh, Giap, Le Duan, Kim-Il-Sung, Fidel Castro y el Che Guevara” (idem, p. 7). O GOR aderiu à Quarta Internacional em 1974, sendo reconhecido como seção simpatizante. Mas a nova organização não resistiu à ditadura que teve início em 1976, à forte repressão sobre sua direção e à derrota de sua estratégia, dissolvendo-se em 1979 sem pena nem gloria.
32A narrativa retrospectiva de Bensaïd deixa claro que as organizações trotskistas estavam muito mal preparadas para a luta armada e superestimavam suas próprias forças. Cf. Daniel Bensaïd. Os trotskismos. Fortaleza: Expressão, 2010. Sobre o GOR e a Fracción Roja ver o recente estudo de Eudald Cortina Orero. Grupo Obrero Revolucionario: autodefensa obrera y guerrilla. Buenos Aires: El Topo Blindado, 2011.
33Daniel Bensaïd. Une lente impatience. Paris: Stock, 2004, p. 184.
34Ver as narrativas de Barry Shepard, cap. 40 e Peter Camejo, militantes na época do Socialist Workers Party.