Carta de Flávio Molina a su madre

CARTA DE FLÁVIO MOLINA* A SU MADRE

Rio, fins de agosto de 1969

Mamãe,

Sei que você ainda não se acostumou com minha ausência. O caminho que escolhi é bastante difícil e ambos devemos saber suportá-lo; devemos encarar a realidade como ela é. Estou fazendo algo que considero certo e por isso saí de casa e abandonei os estudos.

Esta fase inicial da separação é bastante difícil para todos, foi muito rápida e prematura. Prematura porque um dia isto viria a acontecer. Eu não estava preparado e nem vocês. Tenho pensado muito no Cláudio e no Celso, sobre a minha influência “negativa” na formação deles. Eles não têm ainda capacidade para saber o que aconteceu, estão com uma cópia deformada da realidade, pensam que sou um bandido, maconheiro, perseguido pela polícia, e talvez até se envergonhem do irmão. O que fiz não é vergonhoso para ninguém, estou de cabeça erguida e quero que todos também estejam. O ser humano que tem suas idéias e não as leva à prática é um fraco, hipócrita e cabotino, e isto eu não sou, pois o caminho obrigatório da teoria é a prática. E se esta se mostra diferente, cabe dentro desta prática corrigi-la e formar uma nova teoria para buscar novamente a unidade.

A educação que vocês me deram foi muito boa. A prova disso é que Gilberto e Maria atingiram o objetivo com a mesma diretriz educacional. É importante e necessário que o Cláudio e o Celso tenham a mesma educação; dê a eles a mesma liberdade dada aos outros irmãos, não tentem suborná-los com mingos. O que aconteceu comigo independe do lar. Mostre a eles sempre a verdade, não apenas a verdade do “Repórter Esso”, mas toda a verdade, e de todos os ângulos.

Titio, Marta e Nelson também estão surpresos, não? Peça ao titio desculpas pelos tiros que eu dei por lá (foi longe das galinhas), mas eu precisava melhorar a pontaria.

Papai uma vez me disse que não há nada de novo sob o sol. Isto não é verdade; a prova são as mudanças ocorridas em algumas famílias, atualmente

Papai é uma pessoa formidável. Honesto, trabalhador de sol a sol. Sua posição social melhorou? Hoje ele teria condições para criar cinco filhos? Então, que sociedade é esta que vive com o trabalho árduo da grande maioria dos brasileiros, enquanto uma minoria fica viajando pelo mundo e construindo residências em Bariloche, Miami, Riviera etc.? Enquanto o nordestino só tem a roupa do corpo e uma farinha com água, Denner faz um vestido que custa mais caro do que um carro; isto é certo?

Mamãe, estou bem de saúde e de segurança. É como se eu estivesse num colégio interno, como passei a infância. Não corro perigo algum e não precisa se preocupar. Estou terminando a carta; dê aos garotos toda a bênção, amor e carinho que você deu a mim. Não tente mimá-los, seria um grande erro.

Beijos, Flávio.
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* FLÁVIO MOLINA. DE CABEÇA ERGUIDA, LUTANDO PELA VERDADE

Por Ana Paula Aquino Benigno e Luiz Alves
Jornal A Verdade

Flávio de Carvalho Molina, filho de Álvaro Andrade Lopes Molina e Maria Helena Carvalho Molina, nasceu em 8 de novembro de 1947, na Guanabara (hoje Rio de Janeiro). Cursou o primário nos colégios São Bento e São José, no Rio. Era um apaixonado pelo alpinismo e gostava muito de música clássica.

No período de 1966 e 1967, enquanto cursava o científico no Colégio Mallet Soares, no Rio de Janeiro, iniciou a formação de sua consciência política e sua participação nas lutas estudantis. Em 1968, entrou para a Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Praia Vermelha. Foi preso numa manifestação estudantil durante invasão do câmpus pela polícia, sendo levado ao antigo campo de futebol do Botafogo e obrigado a assistir a diversas torturas cometidas contra seus colegas. Militava na Aliança Libertadora Nacional (ALN, organização fundada por Carlos Marighella, V. A Verdade, n.º 12 ).

Em julho de 1969, vendo-se perseguido pelas forças da repressão, optou por deixar a casa de seus pais, visando a não transferir para a família a repressão a ele dirigida. Trancou matrícula na universidade e passou a viver clandestinamente.. Na ocasião, deixou carta para a família na qual explica sua opção:

“...Estou fazendo algo que considero certo e por isso saí de casa e abandonei os estudos. ...O ser humano que tem suas idéias e não as leva à prática é um fraco, hipócrita e cabotino, e isto eu não sou. ...Que sociedade é esta que vive com o trabalho árduo da grande maioria dos brasileiros, enquanto uma minoria fica viajando pelo mundo e construindo residências em Bariloche, Miami, Riviera etc.?...”

Viveu em Cuba, de novembro de 1969 até meados de 1971, quando retornou ao Brasil, passando a integrar o Movimento de Libertação Popular (Molipo).

Dissidência socialista

O Molipo teve como base o grupo de 28 militantes que estavam recebendo treinamento militar em Cuba, conhecido como “Grupo da ilha”, “Grupo dos 28” ou “ 3º Exército da ALN”. A organização já convivia com divergências entre a Frente de Massas e o Grupo Tático Armado (GTA), este militarista, e o primeiro priorizando o trabalho de massa entre os operários. O Grupo da Ilha começou a voltar no final de 1970, à revelia da direção da ALN. Seus integrantes entraram em contato com a Frente de Massas, com a qual compuseram uma dissidência. Expulsos, criaram o Movimento de Libertação Popular (Molipo).

O Molipo não chegou a definir seu programa político, mas textos divulgados no jornal Imprensa Popular revelam uma tendência para definir como socialista o caráter da revolução brasileira (a ALN propugnava pela libertação nacional). O Movimento editou também o boletim Guerrilha Operária. Eles entendiam que a luta armada deveria se dar em função da luta operária, embora, por necessidade de arrecadar fundos, tenha efetuado várias ações de expropriação.

Repressão dizima o Molipo

Mas o Grupo dos 28 estava completamente mapeado. A repressão tinha conhecimento de todos os seus passos, desde Cuba, volta ao Brasil, formação da dissidência etc. Estas informações podem ser vistas nos arquivos do Ministério do Exército – Informação n.º 674/72-II, sob o título “Grupo da Ilha”, e, entre parênteses, a palavra Informante, dando a entender que havia um agente infiltrado no grupo. A maioria dos integrantes do grupo foi presa e morta pelos órgãos repressivos.

Foi o que ocorreu com Flávio Molina. Preso no dia 6 de novembro de 1971, em São Paulo, por agentes do DOI-Codi-SP, ele foi torturado até a morte, segundo os relatos dos presos políticos que se encontravam naquele dia nas dependências do famigerado departamento. Eles afirmaram que Flávio foi assassinado sob tortura no dia 7 de novembro de 1971, desmascarando a versão oficial da polícia de que ele teria sido morto ao tentar reagir à prisão.

Diante da enorme repressão e da falta de livre expressão nos meios de comunicação, a primeira informação de sua morte foi em 29 de agosto de 1972. A família consultou as autoridades, mas foi negada a veracidade da notícia. A prisão e morte de Flávio Molina não foram assumidas pelos órgãos de segurança de imediato. Sua família tentava desesperadamente alguma notícia nas prisões e quartéis, sem nunca conseguir nada!

Somente em julho de 1979 a família, por investigação própria e com apoio dos comitês brasileiros de anistia, tomou conhecimento de seu assassinato. Mas a confirmação oficial só veio 34 anos após sua morte, mediante exame de DNA realizado em julho desse ano.

A família do militante político Flávio de Carvalho Molina descobriu que ele foi enterrado em 1971 numa vala do cemitério clandestino de Dom Bosco, em Perus. Além disso, com essa descoberta abriu-se a possibilidade de identificação de mais de 150 desaparecidos durante o regime militar.

Flávio foi enterrado sob o nome falso de Álvaro Lopes Peralta (um dos codinomes que ele usava no período em que viveu na clandestinidade), o que demonstra que seu nome verdadeiro era conhecido pela polícia bem antes de sua morte, tendo sido intencional seu sepultamento com nome falso .

Fica evidente a ocultação premeditada do cadáver de Flávio por seus assassinos, como mais uma forma de encobrir uma, das inúmeras mortes, sob tortura, durante a ditadura militar.

Fontes:
· Desaparecidos Políticos, Reinaldo Cabral e Ronaldo Lapa, Edições Opção Ltda e Comitê Brasileiro pela Anistia (RJ), 1979
· Dos Filhos deste Solo, Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, Editora Fundação Perseu Abramo e Boitempo Editora, São Paulo, 1999
· Perfil dos Atingidos, projeto “Brasil: Nunca Mais”, Editora Vozes, Petrópolis (RJ), 1988